sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

sexta-feira, 13 de junho de 2008

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A PRÁTICA DO ARTISTA

Rui Mascarenhas

Artesãos, Arquitectos e Designers são todos potencialmente artistas. Todos os homens se fazem artesãos, arquitectos, designers. Poucos se fazem alguma vez artistas, menos ainda assim permanecem. Todos os homens se fazem fruidores, teóricos, ideólogos, mas poucos se fazem críticos, menos ainda assim se mantêm. Artista e crítico são um estado de passagem, não uma posição, muito menos uma essência. Nisso diferem das demais personagens.

O artesão, por um lado, molda forças numa forma tangível. Ele encontra o seu público no fruidor que as utiliza e se deleita com elas. O arquitecto, por outro lado, projecta esquemas numa forma inteligível. Ele encontra o seu público no teórico que aprende e especula sobre elas.

O designer, por fim, reúne formas tangíveis e inteligíveis numa prática, que as desenrola no tempo, enquanto processo, onde as ideias enfrentam a matéria, a matéria enfrenta as ideias, num agenciamento que reúne o corpo e o mundo, o cérebro e a história, em prol de um fim que recebe do exterior. Ele encontra o seu público no ideólogo que avalia as formas segundo a adequação a uma finalidade que assume e proclama como moralmente superior. Tangível e inteligível avaliam-se aí como meros meios, em função de um fim, de um objectivo, que lhes é exterior e que adoptam por inerência de funções e posições.

Artista e crítico encontram-se no prazer dos fenómenos sensíveis mas evitam os perigos do formalismo e da mercadoria decorativa, que agrada sem espírito. Artista e crítico apreciam a especulação conceptual mas evitam os perigos da ilustração e das categorias representativas, que explicam sem paixão.

Artista e crítico sintonizam um horizonte comum mas evitam os perigos de o determinar segundo uma causa transcendente, que se impõe a ambos como uma moral, uma lei que servem ao mesmo tempo que se designam como seus representantes. Artista e crítico correm aqui o perigo da conduta manipuladora e do panfleto, que actua sem agir.

O artesão entrega-se à matéria e molda-a segundo formas, produz substâncias formadas. Ele utiliza os modelos que alguém traçou, e repete-os com minúcia e perícia. Ele aperfeiçoa técnicas e instrumentos, aumentando a sua capacidade de reproduzir. Ele entrega as peças como mercadoria. Elas são agradáveis e exemplares. Jogam com a cor e o desenho, os brilhos e as texturas, explorando a qualidade das forças postas em campo. É toda uma sensibilidade manual. Ele constrói mecanismos simples e encontra a diversão. Uma certa inutilidade dos mecanismos que ganham vida. O artesão antevê o artista.

O arquitecto abstrai construções geométricas num espaço-tempo transcendental, constrói um meio codificado, esquematiza as suas partes segundo as funções requeridas por um todo orgânico, elimina as contradições herdadas da má vontade da matéria e torna os processos lógicos, comandando o artesão. O arquitecto trabalha com ideias e chega a já não se importar que os seus modelos não se materializem. Os projectos são ideia, e neles interessa o seu esquema inteligível. É toda uma sabedoria visual. Joga com tensões ideais mais do que com forças sensíveis. O ideal torna-se um fim em si mesmo e divorcia-se da acção. O jogo segundo regras conhecidas, premiando a astúcia, substitui a criação activa perante as exigências das condições práticas e materiais. O arquitecto falha o artista.

Arquitecto e artesão tendem a afastar-se. A própria ordem social, separando trabalho manual e conceptual, divorcia as duas abordagens. Platão foi talvez o primeiro a encenar estas duas personagens filosóficas: o artesão e o arquitecto. Platão via-os segundo a relação do Senhor e do Escravo, num esquema hilemórfico de determinante-determinado, que de resto percorre todos os seus esquemas. O arquitecto determina necessariamente o artesão. É esta a ordem natural das coisas na antiguidade, onde a ideia determina a matéria, o trabalhador da ideia determina o trabalhador da matéria.

O arquitecto, porém, só cria quando se confronta, num plano imanente, com a nova matéria e novas práticas. Não é nos seus esquemas imaginários, cegos a todas as suas contradições internas, que o arquitecto vai poder criar. É perante a matéria, na prática. É quando é também artesão e político que Le Corbusier olha o betão armado e inventa novos modelos para a arquitectura. É quando o arquitecto se coloca corpo a corpo com a matéria, ideia e mundo em diálogo, que surgem verdadeiramente os novos modelos adequados às novas condições de facto.

O artesão, por seu lado, só cria quando se confronta com a necessidade de novos modelos e novos projectos, que lhe exigem a argúcia na invenção de novos instrumentos e o desenvolvimento de novas perícias. Não é no aprimorar incremental de artes herdadas da tradição, cegas à arbitrariedade do que se reproduz, que o artesão poderá criar. É quando confrontado com novos projectos, requerendo novos modelos, que se criam as novas perícias e instrumentos.

O designer reúne o artesão e o arquitecto na prática. O designer é um artesão e é um arquitecto. Ele é pragmático e molda as ideias como molda a matéria numa prática simultânea. Faz moldes e desenvolve materiais. Aperfeiçoa instrumentos e modelos, adequa uns e outros de forma a aperfeiçoar a reprodutibilidade e, mais ainda, a sua durabilidade. Ele acopla materiais diversos, segundo esquemas detalhados, em máquinas úteis. O designer instrumentaliza o arquitecto e o artesão; abrange toda uma prática social de aperfeiçoamento contínuo das formas materiais e inteligíveis. É o designer de equipamento e de comunicação como actor social. A acção e o discurso instrumentalizados.

O designer confunde-se quase sempre com um arquitecto artesão ou o seu inverso. Ele, tal como os seus companheiros, serve uma causa externa que lhe determina os fins. Ao apagar-se na determinação dos fins, o designer limita a sua capacidade criadora à determinação engenhosa das formas materiais e inteligíveis que melhor realizem um fim que lhe é externo, por mais que o faça seu.

O mercado ensina-lhe inevitavelmente que o seu valor, enquanto designer, é ser eficaz independentemente dos fins que lhe são designados. A sua actuação é determinada do exterior e nisso ela pode ser perigosa, como se pode dizer que a técnica e a ciência podem ser perigosas nas mãos erradas.

A banalidade dos arquitectos, dos designers, dos artesãos que fizeram corpo com as aventuras totalitaristas do século XX, deu bem conta do perigo em ser-se eficiente sem se questionar os fins que dirigem a acção. A desculpa banal de que se cumpria com rigor as funções prescritas tornou-se claramente insuficiente. Todas as sociedades têm artesãos, arquitectos e designers, actuando segundo um senso comum, de acordo com um bom senso. Por isso o espaço público necessita dos artistas e das suas obras.

Inteiramente determinadas pelo senso comum que distribui figuras legíveis e pelo bom senso que estabelece as relações adequadas, as práticas cristalizar-se-iam nas relações de força instituídas, o estereótipo e o cliché reproduzir-se-iam monotonamente em mercadoria decorativa, em ilustrações úteis, em actuações interesseiras. A ordem estabelecida perpetuar-se-ia acriticamente.

Os problemas, porém, nunca são monótonos e não se recalcam sem erupções. Artesãos, arquitectos, designers, nas suas histórias privadas, cruzam fronteiras no interior de um mesmo indivíduo, de um grupo, e estabelecem diálogos, criando técnicas, fórmulas, processos alternativos. Alargam, na prática, o seu espaço de actuação e as suas condições. Não é o arquitecto que determina o artesão, nem o artesão que determina o designer. Não é uma questão de tradução de um campo para o outro, da matéria para as ideias ou para a acção, mas de transdução, onde num lugar, sob determinadas condições exigentes se entrecruzam técnicas, saberes e práticas, gerando novos instrumentos, novos modelos, novos processos.


O ARTISTA PRATICA

O olhar do artista liberta-o das convenções do senso comum onde a pintura se faz com telas e a escultura com pedra, onde a colagem é sobre papel e a acoplagem é aleatória, onde mecanismo e artesanato, esquemas e teoria, não têm lugar explícito numa obra de arte. A sua prática liberta-se do bom-senso onde a relação entre media e códigos, as partes e o todo, os meios e os fins, estão institucionalmente predeterminados. Ele assume-se agente livre, que age e fala em público sobre o fazer e o dizer, o ver e o ouvir.

O artista embrenha-se no saber técnico, no trabalho conceptual, no mundo e na história, prosseguindo um processo prático onde se cruza a matéria e os signos, a dimensão estética e teórica, afectiva e elucidativa, empática e reflexiva. O artista mantém os dois olhos e os dois ouvidos bem abertos. Nem artesão embrenhado na produção, nem arquitecto alheado na concepção. Nem mesmo designer, implicado na prática sem decidir sobre os fins. O artista está de posse dos fins, ainda que estes passem pela sua partilha. Esta é a sua ética.

Essa ética serve-lhe como critério de escolha. Todos os materiais, todas as técnicas e práticas são então viáveis. O trabalho do Ícaro apresenta-se aqui como caso paradigmático, obra exemplar, capaz de nos assegurar, com surpresa e entusiasmo, que é ainda possível a fuga à mercadoria, à decoração, à ilustração. Mas isso, percebemos bem, não significa recusar o designer, o artesão, o arquitecto. Muito pelo contrário. O artista incorpora na obra a importância dos seus papéis para os transcender numa nova prática.

O trabalho do Ícaro é a prova de que é ainda possível criar novas formas materiais, novos códigos de enunciação, novos modos de agir. Isso não significa porém recusar todo o passado e toda a memória, numa tábua rasa ideal, num caos material, numa convulsão social. Muito pelo contrário. A novidade da obra passa exactamente pela relação original com o antigo, num processo criativo que faz corpo presente com a memória, da matéria, do artista e do público.

O artista não necessita de mais do que o que tem à mão e em si para chegar aos seus fins.

Vejam-se as molduras, por exemplo. Elas são enquadramento, sensível e institucional. Artesão, arquitecto e designer têm olhares diferentes sobre as molduras. O artista combinará os três num único olhar. O seu olhar sobrevoa os três.

As molduras reproduzem o modelo inventado numa época segundo a sua ideia de arte a emoldurar. Elas remetem-nos para as casas e os museus onde conhecemos a sua forma. As molduras, por outro lado, sacralizam a planície de um quadro. São a janela por onde espreitar, para dentro ou para fora. Elas determinam as proporções interiores a toda a representação nela contida. Elas são os limites sensíveis onde encenar a representação. As molduras pintadas de dourado presentificam e representam uma moldura geral, que glorifica o que enquadra. A moldura, no processo, solta-se e flutua na história sem se libertar da sua materialidade. A moldura enquadra tanto quanto é enquadrada, ou desenquadrada, ela move-se literalmente e fisicamente.

O artista utiliza a moldura em todas as suas potencialidades retirando-lhe todo um poder estético e simbólico imprevisto. Acopla-a à máquina, dá-lhe um lugar, mais ou menos central, que é sempre independente do senso comum e do bom senso, que lhe explica a utilidade e lhe atribui uma função, remetendo antes para o valor material, simbólico e prático, que ela adquire no processo da obra.

No interior da moldura, o senso comum espera encontrar o desenho e a geometria, a cor e a luz, a enunciação das razões ou a encenação das paixões. O bom senso espera valorizar a perícia, a inteligência, o engenho. Esses são elementos que podem, subitamente, sair fora da moldura ou envolvê-la.

O artista põe-nos a olhar duas, três vezes para a moldura, e de cada vez extrai novas potencialidades plásticas, conceptuais, práticas, ficando-se sem saber se foi respigada pelas suas características materiais, enquanto signo diferencial, ou por puro resultado do processo em que toda a obra parece ter vindo a(o) ser.

A cera na madeira, a cabeceira de uma cama, os armários, uma caixa de ferramentas, diagramas recortados, uma almofada de linho, ilustrações, uma manivela, são matéria e signos, tomados de empréstimo e acoplados segundo esquemas enigmáticos - máquinas que se movem e se enunciam num processo que requer sempre a acção do público, ainda que imaginária.

O público não deve ficar passivo, não deve deixar-se determinado. A experiência pública da obra deve promover a acção livre, não a passividade condicionada. O autor promove um diálogo com agentes, não um monólogo com ouvintes ou voyeurs. O artista promove os seus críticos.

O artista convida o público para o seu mundo, as suas obras são hospitaleiras. Um mundo artesanal, um mundo esquemático, um mundo prático, todo ele imediatamente inútil e enigmático, jogando com o bom-senso e o senso-comum, escolhendo os seus próprios meios, criando o seu próprio código, colocando os problemas e propondo as soluções.

Expressão de liberdade, a obra actualiza criativamente a experiência pública, o gosto do público.

Para o artista e o crítico, não se trata nunca de reproduzir o que aprendemos, de reconhecer o que sabíamos, mas de criar, publicamente, vivência sensível tanto quanto experiência inteligível. Uma resposta inovadora a novos problemas - não se trata do novo pelo novo, mas da necessidade de novas soluções perante problemas sempre renovados.

Ícaro liberta-se do senso comum e do bom senso, mas não é já o romântico que o seu nome evoca. Ele é a ascensão e queda sempre renovada na história. Ícaro, na sua diferença, volta sempre a lançar-se no voo em direcção ao sol. A queda não é o fim mas parte do processo vivo. Ícaro não se submete à falta nem à lei e isso não o larga num desejo natural e espontâneo. Não se trata de uma regressão a um pressuposto estado natural.

A construção de acoplagens permite a Ícaro libertar a Vida, activa e contemplativa, na identidade processual e performativa entre produção e produto. Não mais a dialéctica fechada entre artista e técnica determinante, por um lado, da obra e do público determinado, por outro. Substituindo Deus pela Imanência viva na Ex-Machinae, Ícaro encontra um modo e formas exemplares de praticar um Expressionismo construtivista. Um gosto maquínico, mais do que mecânico ou orgânico, uma conexão, mais do que uma divergência ou conjugação com o mundo.

Entre a deriva construtivista e o delírio espontâneo, entre o dadaísmo e o surrealismo, o expressionismo assumido por Ícaro envereda claramente pela primeira linha de fuga. O sujeito desaparece no processo, não precede sequer o processo: está em processo, em construção. A obra torna sensível a ideia do obrar do artista e do mundo, com o seu tempo de fundo.

O crítico entusiasma-se!!!